MILTON COELHO, OU A CEGUEIRA DAS DITADURAS

 

A ditadura cegou Milton, mas não o impediu de pensar.

 

 

Toda ditadura que se instala, é, invariavelmente, o resultado de uma cegueira  temporária obscurecendo  a razão de um povo.

Como ocorre esse processo, é algo complexo sobre o qual se debruçam historiadores,    “ psicanalistas ou psiquiatras  sociais “, ocupando, todos, os divãs imensos à frente dos quais estariam as multidões desacomodadas.

Naquele fevereiro de 1976, véspera de Carnaval, Aracaju vivia um daqueles dias aparentemente  tranquilos, habituais, num clima de ditadura onde a imprensa é amordaçada, só existem as notícias oficiais, e o povo nem pia.

De repente, começaram as prisões. Eram principalmente jovens estudantes, ou sindicalistas, todos “ subversivos”, capturados nas ruas, nas suas casas, e levados ao quartel do 28º BC, transformado em cárcere político, e de onde se afastaram  os seus oficiais, para que começasse a chamada “ Operação Cajueiro”, levada a efeito por agentes “especiais” que teriam vindo de Salvador.

Não existiam direitos, o habeas corpus estava suspenso, e toda a mídia emudecida, o Congresso  reaberto,  funcionando precariamente debaixo da ameaça de cassações.

O período já era de distenção , anunciava-se a possibilidade da anistia, e a transição, lenta, gradual e segura para a normalidade, nos moldes estabelecidos pelo general – presidente Ernesto Geisel.

O que ninguém sabia é que fervilhava nos quarteis um clima de sedição. O general comandante da 6º Região Militar em Salvador,  era extremista,  adepto do extremista general Sílvio Frota,  Ministro do Exército, que avançava na trama golpista contra o presidente Geisel, acusado de ser tolerante com os  “ subversivos “, e, pior ainda, ter restabelecido relações diplomáticas  e comerciais com a China Comunista, seguindo, aliás, os passos do americano Richard Nixon, que já  fizera a mesma coisa. A China era um atraente  mercado de mais de setecentos milhões de habitantes , que ampliava o consumo, e o Brasil poderia obter excelentes resultados econômicos. Como viria a acontecer.

As prisões, naquele  “fim de mundo” sergipano,  serviriam para demonstrar que o “perigo comunista” permanecia bem vivo, e   os “ subversivos “, sorrateiramente, tramavam uma revolução armada.

Assim, militantes ou não, apenas suspeitos de ligações com o clandestino Partido Comunista Brasileiro,  que a “inteligência” do regime não sabia, ou aparentava desconhecer, mas era o velho “ partidão ,“  declaradamente contra as aventuras armadas, e apenas tentava, por via política e pacífica acelerar o processo de redemocratização.

Seguindo a linha -dura do frotismo, ou seja, do ambicioso general que alardeava o avanço da “subversão,” para tirar proveito,  e tomar de assalto o poder,   montou-se no quartel -prisão um aparato desumano de tortura. O grupo de militares e civis carrascos, estava sob o comando de um desconhecido e

Invisível coronel Oscar Silva. E começou a pancadaria. Queriam, de qualquer jeito,  extrair “ confissões “ que confirmassem a existência de um núcleo armado, pronto a desencadear a revolução vermelha.

Hoje, há um grupo de encanecidos senhores aposentados, advogados, promotores, engenheiros, políticos, agrônomos, professores, jornalistas,  empresários, todos eles deram sequência às suas  existências, tentando aliviar as

sequelas  do mergulho forçado no inferno da degradação humana, com os seus atrozes demônios.

Entre estes, o petroleiro, trabalhador da PETROBRAS Milton Coelho .

No dia em que retiraram dos seus olhos a venda apertada que os comprimia, ele, desejoso de rever a luz, apenas disse: “estou  cego”. E ouviu do sicário impassível: “ isso  dura pouco, logo passa”.

Não passou.

Milton, todavia,  não deixou um só momento de enxergar o mundo, de sonhar com um Brasil iluminado pelo sentimento humano, pela Justiça.

E prosseguiu ativista da razão, falando, gesticulando, lendo, aprendendo sempre mais, fazendo da vida um laboratório de convivência permanente com a química virtuosa da solidariedade.

Com a esposa, fortaleceu os laços da família, criou os seus filhos, transmitindo-lhes, não a dor do sofrimento, nem o desespero da esperança perdida. Fez deles cidadãos.

Milton  Coelho  estava longe de nascer, quando, naquele agosto de 1939, tropas nazistas e comunistas, Hitler e Stalin,  de mãos dadas, se uniram para a devastação da Polonia, que, vencida, tornou-se a presa repartida entre os dois abutres.

Milton era quase criança,  quando, em fevereiro de 1956, no 20º Congresso do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviética, o novo tzar de todas  as “rússias , o camarada Nikita Kruschev,  revelou, num longo  discurso de cinco horas aos camaradas  soviéticos, e aos camaradas internacionalistas ali presentes, a dimensão dos horrendos crimes cometidos pelo camarada já morto, e com amaldiçoada memória, Joseph Stalin, “ o guia genial dos povos “, transformado de um dia para a noite no real carniceiro que sempre fora.

Milton Coelho tinha plena consciência de que  a peste do fascismo está na essência das ditaduras, porque todas possuem o mesmo DNA do culto à violência, e

à desumanização.

O fascismo prega o ódio, renega a solidariedade entre povos e países, e as ditaduras, sejam elas vermelhas, amarelas, brancas ou pretas, são os instrumentos dessa aversão maligna.

Ao contrário do que poderia ser alguma forma de desilusão, Milton Coelho construiu, no corpo e na alma, a sua fortaleza rara da convicção na solidariedade humana.

Há uns dez anos, um jornalista amigo foi convidado por Milton para ir à sua casa, onde ele queria lhe apresentar uns textos e umas ideias que andava a burilar.

Chegou então por volta de um fim de tarde de inverno já começando a escurecer. Bateu à porta, chamou, bateu palmas. Passado algum tempo, sentiu que aproximava-se alguém para abrir a porta. Era Milton. E o amigo que chegava lhe disse:

Já ia embora, pensei que não havia ninguém em casa, porque estava escuro.

E Milton explicou: minha mulher e meus filhos estão chegando, então eles acendem a luz. Para mim, qual a diferença ?

Quarenta e oito anos depois de lhe terem retirado a venda apertada aos olhos, e constatar que perdera a visão, Milton, para quem não é agnóstico alcança a plenitude da luz.

E dessa luz, ninguém conseguirá privá-lo.

Seriam os seus soturnos torturadores, instrumentos da bestialidade que apossou-se de alguns integrantes do próprio Estado, também merecedores da mesma luz, que abençoa, homenageia e clarifica ?

Naquele janeiro terrificante e quase fatídico de 2023, quando a horda  bandida da linha de frente golpista, destruía os três maiores símbolos da República e do Estado Democrático, muitos, que conheciam a história do cidadão brasileiro cego por uma ditadura ,  na iminência do naufrágio da  nossa civilização,  teriam se perguntado: Quantos Milton Coelho haverá desta vez ?

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